Mudei-me para Vila Real alguns meses após ter terminado o curso.Naquela época era bem diferente dos dias que correm, se quisesse teria tido logo trabalho,até poderia se quisesse escolher o melhor sitio para trabalhar,mas como menina mimada que era achei melhor que teria que sair do Porto para bem próprio da minha saúde mental. Afastar-me de alguns fantasmas talvez fosse o melhor a fazer a mim mesma.
Os
primeiros dias na aldeia foram fantástico,revitalizantes, praticamente tinha me
esquecido da dor pela qual recentemente tinha passado, tinha me esquecido quase
de quem seria o Carlos e de que ele tinha apostado tudo numa carreira para me
deixar a mim. A dor era tanta que quase imaginava que não seria real, que quase
teria sido um pesadelo e foi nestes dias assim que comecei a entender quem é
psicótico, quem é esquizofrenico, quando a linha da realidade do que é sonho
quase que se mistura.Estava tão convicta em o esquecer que parece que ele nem
tinha existido, que me confundia se eu não estaria a dormir e tudo não tivesse
passado de um pesadelo, mas de noite tudo vinha à memoria, e tinha alucinações
completas dele a viver na Alemanha, com outra pessoa, a viver uma vida longe de
mim e eu aqui a chamar e a gritar por ele sem que ninguém jamais ouvisse o meu
grito.
Certos
dias tentava meditar e tentva manter a calma, mas a solidão em Vila Real também
começava a dar os seus sinais de amargura. Os meus avos já não estavam entre
nós e a casa apesar de bem conservada encontrava-se às moscas.Tinha tempo para
tudo e por vezes tempo a mais.
Por
vezes, no silencio da casa muitas vezes durante as longas noites de Inverno e
com pouco ou nada para fazer ficava a olhar para as portas, à espera que o
Carlos entrasse e me surpreendesse.Por vezes o sonho era tão forte que parecia
que via realmente a atravessar o corredor daquela casa velha de pedra,a correr
para mim, a abraçar-me fortemente e dizendo para eu não me preocupar, que o
pesadelo tinha acabado e que eu seria novamente feliz ao seu lado.
Como é que consegui
sobreviver tantos tempos num outro espaço ainda hoje não o consigo
perceber.Estar longe do Porto foi a pior coisa que eu pude ter feito a mim
mesma. Para não bastar ter ficado longe de alguém que amava, ainda me arranquei
a mim mesma de um espaço que tanto amava. Podia apenas olhar para uma foto da
minha cidade (que trazia todo o dia no meu coração) e uma lágrima brotava logo.
Claro que os espaços somos nós que os fazemos com as memórias que depois
carregamos dentro de nós acerca deles, e talvez seja tudo isso misturado que
nos traz ao coração esse sentimento tão profundo de saudade e nostalgia. Por
vezes é um sentimento bom mas a maior parte das vezes ,para mim,
tornava-se somente doloroso. Não era bom estar longe,nem do Porto nem do
Carlos. Claro que Vila Real, por terras dos meus avos, nem tudo era mau. Tinha
tempo para colocar as minhas leituras em dia, e ter aquele prazer de me sentar
numa velha cadeira debaixo de uma árvore e ficar toda a tarde sossegada a ler
enquanto apanhava sol.Era bom igualmente ouvir a chuva em dias de
inverno, ver as estações do ano com outro olhar e ver principalmente chegar o
Outono ( ainda hoje a minha estação do ano preferida) e ver
pores-do-sol magníficos ao fim da tarde no campo, ver as árvores a
perderem as suas folhas e a ficarem nuas e comer fruta arrancada
directamente das árvores. Porém os dias tornavam-se repetitivos e vazios de
sentido num espaço que a mim não me pertencia, a vida em criança lá seria muito
mais preenchida, tudo estaria á descoberta, mas passado um mês, para uma adulta
numa espécie de crise existencial já nada havia de novo para observar
e as memórias que durante um mês pareciam ter sido eliminadas voltavam devagar
à mente noite após noite, tornando cada noite que se aproximava o inicio de um
pesadelo. Mas eu sabia que no Porto também não podia estar mais, eu
adorava a minha cidade e por isso para poder voltar a viver nela com serenidade
tinha que tentar criar um novo conceito para a mesma, longe das recordações que
ela trazia para mim do Carlos e de tudo o que com ele tinha vivido. Mais tarde
iria aperceber-me do quão ingénua tinha sido. Não se apaga simplesmente da
memória coisas que ficaram para sempre gravadas no coração e por mais que
tentemos, certos lugares e certas pessoas vão nos acompanhar até ao fim dos
nossos dias, quer queiramos ou não.Só que naquela altura era muito jovem para
perceber tudo isso,e pensava que com novos objectivos e um novo projecto de
vida poderia ser feliz e esquecer o passado. Estava enganada,a idade iria
me ajudar a perceber que as coisas que marcaram a nossa vida, tanto as boas
como as más estarão sempre connosco e isso não conseguimos alterar, só temos de
aprender a lidar com elas, e essa é a parte mais difícil, aquela que nos põem à prova da pessoa que realmente somos."
In Não Mor(r)o Aqui, Araci Almeida
Nenhum comentário:
Postar um comentário