07 junho, 2012

Noite


1.


O Inverno tinha chegado, as noites estavam claras e estreladas e o frio tornava a respiração difícil para muitos, principalmente aqueles que faziam as ruas do Porto a sua casa. Porém era Sábado e numa outra parte da cidade  era sinonimo de juntar uma ou outra amiga, marcar um ponto de encontro num qualquer bar e esperar uma noite agradável.

Estes momentos de diversão, eram sem dúvida para mim, o melhor que me podiam oferecer depois de uma semana exaustiva no estúdio. Eu e a Helena, uma amiga já de longa data, voltamos a frequentar, passados já alguns anos, O "Black and jazz" um bar espectacular que frequentávamos desde a faculdade, situado para os lados da Foz. Apesar de moderno, o bar brilhava pela mistura do novo com o antigo, uma espécie de cultura pop intercalada com artefactos de outrora, como era o caso da jukebox que se encontrava ao fundo do bar e a multiplicidade de cores vindas nem eu sei de onde.

 As noites de sábado eram conhecidas pelas noites do jazz, noites em que o bar se enchia de gente meia estranha (pelo menos era o que eu pensava quando era estudante universitária). Essa gente chamava de “ novos riquinhos”, gente com dinheiro no bolso mas sem qualquer cultura para poder apreciar as noites deliciosas de sábado. Sempre me perguntava, já desde os meus 18 anos, qual a verdadeira razão para aqueles trintões e quarentões, irem ali, se pelas caras deles não apreciavam a melodia. A resposta era  simples e clara: mulheres. E apesar de o tempo ter passado, cerca de dez anitos depois, e nessa mesma noite, o Black estava povoado pelo mesmo tipo de personagens, obviamente a razão permanecia a mesma de há exactamente uma década antes. Porém, e tirando este tipo de gentinha, o ambiente  ainda era chamativo. Os seguranças já não eram os mesmos, antigamente lembro-me bem de haver dois matulões na entrada e agora estava só lá um, cuja função era só dar os cartões para o consumo.

O Pedro, que já era empregado de mesa no Black já desde os nossos tempos de universitárias, fez uma grande festa, quando nessa noite , entramos pela porta adentro do Black. Falou logo connosco e porque raio andávamos tão desaparecidas, como estava a nossa vida, aquele tipo de perguntas que pessoas que já não vemos há anos nos fazem sempre. O Ricardo, o dono do bar, também veio nos cumprimentar passado um tempito l. Quando chegamos, ele estava a falar com um homem alto, moreno, cabelos já grisalhos que lhe davam um certo ar sedutor. Interagiam como velhos amigos. Agitavam-se entre o palco e o bar, entre melodias de jazz e cheiros de álcool, num emprego que para o Ricardo, era mais diversão que trabalho.

Naquela noite, para além dos “ esquecidos da vida” que com o olhar preso em algo, paralisados, riam secamente entre piadas sem algum nexo e pedindo ao Pedro: «Mais um desses fortes por favor!», estavam também um bando de mulheres pouco mais velhas que nós, com vestidos curtíssimos, sem classe nenhuma, sem cultura nenhuma, que comiam as palavras a meio das frases, mulheres a quem não se conseguia ver a pele tanto eram as pinturas carregadas nos olhos, os batons baratos a borratarem-lhes os lábios, e os saltos altos, desmesuradamente altos, em cima dos quais elas mal sabiam caminhar. De facto o Black já tinha sido mais bem frequentado!Quando eu e a Helena chegamos, a música tinha já começado.

A meio do bar, não muito longe do palco, ficamos sentadas num sofá branco, bem aconchegante, entre o balcão e o palco, mesmo bem situado para podermos pedir as nossas bebidas e poder olhar para o palco e apreciar a música.

 Estávamos as duas a conversar, a pôr em conversa em dia, a fazer os queixumes da semana, e eu já à espera de ouvir ela lamentar-se do seu casamento com o Miguel, como seria já bem de prever. Mas isso não aconteceu. Entre ter chamado o Pedro para pedir um safari cola, e ter me voltado novamente para ela, ela já se tinha perdido. O seu olhar desviou-se quando entrou em palco o mesmo homem com quem o Ricardo falava há instantes. Ela então perdeu-se completamente, os seus olhos brilhavam, entre as pequenas faixas de luz que entretanto rodavam o bar. Quando ele entrou em palco, e ousou as mãos no teclado, a Helena suspirou e deu um pequeno sorriso para mim e disse-me:

- Já não os fazem como antigamente!
Rimo-nos.

- De facto, de facto – disse-lhe a rir, confirmando as palavras dela, enquanto dava pequenos goles na minha bebida.

- Já viste que homem! Para além de bonito, ainda toca piano! Destes assim é que podiam encher o Black, e não estes gajos aqui da frente – disse já meia a sussurrar.
Calamo-nos, não fosse mais alguém ouvir estes disparates nossos e ficar ainda ofendido. O momento também não era para conversas, o Black tinha se inundado por um silêncio que me deixou surpreendida e por esta altura apenas a música flutuava no ar.

O Black trazia-me boas recordações, e a música que me entrava ao de leve nos ouvidos trazia-me sensações e memorias já esquecidas, pertencentes a uma outra vida. Imagens de amores passados giravam pela minha cabeça ao som do piano, e eu deixava-me viajar, como se conseguisse viajar no tempo. Fechei os olhos e só os voltei a abrir quando uma salva de palmas soou pelo Black. Foi então que reparei que a Helena não estava já ali no sofá comigo, mas sim a falar com o Pedro. Se bem a conheço, o mais certo era estar a fazer perguntas sobre um certo pianista. Levantei-me, dirige-me a eles, e juntei-me à conversa.

O Ricardo aproximou-se, cumprimentando-nos com um sorriso aberto e acolhedor, e dizendo para voltarmos mais vezes e trazermos mais amigas.

- Então a estrela da noite é teu amigo? – Perguntou a Helena já segurando a sua terceira bebida, com as bochechas rosadas.

- Tanto os meus clientes como aquelas a quem tenho de pagar, tento sempre manter uma boa relação. O gajo é porreiro, mas eu só o conheço pela música que ele toca, e com vocês puderam ver, disso percebe bem ele. Mas ele nem é daqui, é de lá de baixo já para Marrocos… - disse o Ricardo num tom de riso

- Marrocos? – Perguntou a Helena acreditando mesmo que se trataria dum marroquino.

- Tradução: Lisboa – Disse-lhe rindo-me para o Ricardo.
- Hum ok. Então ele é de Lisboa…

O Ricardo, apesar de sempre acolhedor, estava estranho naquela noite. Seria talvez pela presença de Helena, que apesar de volvidos alguns anos, parecia que esta ainda mexia com ele.

- Ouve lá Helena… então e o teu marido? Por onde anda ele? – Perguntou cortando então a conversa.

- Está em casa! Hoje é noite para sair com as amigas, né Raquel?

- Exactamente! – Disse-lhe sorrindo.

A noite acabou por volta das duas da manhã, saímos do Black, deixamos a foz e rumamos até ao Porto. Depois de ter deixado a Helena em casa, segui para a minha. Sem sono tirei a roupa a custo, e enfiei-me debaixo do chuveiro numa água quente que caía sobre mim com uma grande pressão. Fechei os olhos, e voltei ao Black, não o de 2011, mas o de uma década antes, o meu Black dos tempos de estudante, o meu Black das minhas paixões, das minhas ilusões, e da música flutuante que tornava a realidade numa espécie de mundo paralelo.

( e assim começa o primeiro capitulo do meu livro)

Nenhum comentário:

Número de visitantes