O Inverno tinha chegado, as noites estavam claras e estreladas e o frio
tornava a respiração difícil para muitos, principalmente aqueles que faziam as
ruas do Porto a sua casa. Porém era Sábado e numa outra parte da cidade era sinonimo de juntar uma ou outra amiga, marcar um ponto de encontro
num qualquer bar e esperar uma noite agradável.
Estes
momentos de diversão, eram sem dúvida para mim, o melhor que me podiam oferecer
depois de uma semana exaustiva no estúdio. Eu e a Helena, uma amiga já de longa
data, voltamos a frequentar, passados já alguns anos, O "Black and jazz" um bar espectacular que frequentávamos
desde a faculdade, situado para os lados da Foz. Apesar de moderno, o bar
brilhava pela mistura do novo com o antigo, uma espécie de cultura pop
intercalada com artefactos de outrora, como era o caso da jukebox que se encontrava ao fundo do bar e a multiplicidade de
cores vindas nem eu sei de onde.
As noites de sábado eram conhecidas pelas
noites do jazz, noites em que o bar se enchia de gente meia estranha (pelo
menos era o que eu pensava quando era estudante universitária). Essa gente
chamava de “ novos riquinhos”, gente com dinheiro no bolso mas sem qualquer
cultura para poder apreciar as noites deliciosas de sábado. Sempre me
perguntava, já desde os meus 18 anos, qual a verdadeira razão para aqueles
trintões e quarentões, irem ali, se pelas caras deles não apreciavam a melodia.
A resposta era simples e clara:
mulheres. E apesar de o tempo ter passado, cerca de dez anitos depois, e nessa
mesma noite, o Black estava povoado
pelo mesmo tipo de personagens, obviamente a razão permanecia a mesma de há
exactamente uma década antes. Porém, e tirando este tipo de gentinha, o
ambiente ainda era chamativo. Os
seguranças já não eram os mesmos, antigamente lembro-me bem de haver dois
matulões na entrada e agora estava só lá um, cuja função era só dar os cartões
para o consumo.
O Pedro,
que já era empregado de mesa no Black
já desde os nossos tempos de universitárias, fez uma grande festa, quando nessa
noite , entramos pela porta adentro do Black.
Falou logo connosco e porque raio andávamos tão desaparecidas, como estava a
nossa vida, aquele tipo de perguntas que pessoas que já não vemos há anos nos
fazem sempre. O Ricardo, o dono do bar, também veio nos cumprimentar passado um
tempito l. Quando chegamos, ele estava a falar com um homem alto, moreno,
cabelos já grisalhos que lhe davam um certo ar sedutor. Interagiam como velhos
amigos. Agitavam-se entre o palco e o bar, entre melodias de jazz e cheiros de
álcool, num emprego que para o Ricardo, era mais diversão que trabalho.
Naquela
noite, para além dos “ esquecidos da vida” que com o olhar preso em algo,
paralisados, riam secamente entre piadas sem algum nexo e pedindo ao Pedro:
«Mais um desses fortes por favor!», estavam também um bando de mulheres pouco
mais velhas que nós, com vestidos curtíssimos, sem classe nenhuma, sem cultura
nenhuma, que comiam as palavras a meio das frases, mulheres a quem não se
conseguia ver a pele tanto eram as pinturas carregadas nos olhos, os batons
baratos a borratarem-lhes os lábios, e os saltos altos, desmesuradamente altos,
em cima dos quais elas mal sabiam caminhar. De facto o Black já tinha sido mais bem frequentado!Quando eu e a Helena chegamos, a
música tinha já começado.
A meio do bar, não muito longe do
palco, ficamos sentadas num sofá branco, bem aconchegante, entre o balcão e o
palco, mesmo bem situado para podermos pedir as nossas bebidas e poder olhar
para o palco e apreciar a música.
Estávamos as duas a conversar, a pôr em
conversa em dia, a fazer os queixumes da semana, e eu já à espera de ouvir ela
lamentar-se do seu casamento com o Miguel, como seria já bem de prever. Mas
isso não aconteceu. Entre ter chamado o Pedro para pedir um safari cola, e ter
me voltado novamente para ela, ela já se tinha perdido. O seu olhar desviou-se
quando entrou em palco o mesmo homem com quem o Ricardo falava há instantes.
Ela então perdeu-se completamente, os seus olhos brilhavam, entre as pequenas
faixas de luz que entretanto rodavam o bar. Quando ele entrou em palco, e ousou
as mãos no teclado, a Helena suspirou e deu um pequeno sorriso para mim e
disse-me:
- Já não os fazem como
antigamente!
Rimo-nos.
- De facto, de facto – disse-lhe
a rir, confirmando as palavras dela, enquanto dava pequenos goles na minha
bebida.
- Já viste que homem! Para além
de bonito, ainda toca piano! Destes assim é que podiam encher o Black, e não estes gajos aqui da frente
– disse já meia a sussurrar.
Calamo-nos, não fosse mais alguém
ouvir estes disparates nossos e ficar ainda ofendido. O momento também não era
para conversas, o Black tinha se
inundado por um silêncio que me deixou surpreendida e por esta altura apenas a
música flutuava no ar.
O Black trazia-me boas recordações, e a música que me entrava ao de
leve nos ouvidos trazia-me sensações e memorias já esquecidas, pertencentes a
uma outra vida. Imagens de amores passados giravam pela minha cabeça ao som do
piano, e eu deixava-me viajar, como se conseguisse viajar no tempo. Fechei os
olhos e só os voltei a abrir quando uma salva de palmas soou pelo Black. Foi então que reparei que a
Helena não estava já ali no sofá comigo, mas sim a falar com o Pedro. Se bem a
conheço, o mais certo era estar a fazer perguntas sobre um certo pianista.
Levantei-me, dirige-me a eles, e juntei-me à conversa.
O Ricardo aproximou-se,
cumprimentando-nos com um sorriso aberto e acolhedor, e dizendo para voltarmos
mais vezes e trazermos mais amigas.
- Então a estrela da noite é teu
amigo? – Perguntou a Helena já segurando a sua terceira bebida, com as
bochechas rosadas.
- Tanto os meus clientes como
aquelas a quem tenho de pagar, tento sempre manter uma boa relação. O gajo é
porreiro, mas eu só o conheço pela música que ele toca, e com vocês puderam
ver, disso percebe bem ele. Mas ele nem é daqui, é de lá de baixo já para
Marrocos… - disse o Ricardo num tom de riso
- Marrocos? – Perguntou a Helena
acreditando mesmo que se trataria dum marroquino.
- Tradução: Lisboa – Disse-lhe
rindo-me para o Ricardo.
- Hum ok. Então ele é de Lisboa…
O Ricardo, apesar de sempre
acolhedor, estava estranho naquela noite. Seria talvez pela presença de Helena,
que apesar de volvidos alguns anos, parecia que esta ainda mexia com ele.
- Ouve lá Helena… então e o teu
marido? Por onde anda ele? – Perguntou cortando então a conversa.
- Está em casa! Hoje é noite para
sair com as amigas, né Raquel?
- Exactamente! – Disse-lhe
sorrindo.
A noite acabou por volta das duas
da manhã, saímos do Black, deixamos a
foz e rumamos até ao Porto. Depois de ter deixado a Helena em casa, segui para
a minha. Sem sono tirei a roupa a custo, e enfiei-me debaixo do chuveiro numa
água quente que caía sobre mim com uma grande pressão. Fechei os olhos, e
voltei ao Black, não o de 2011, mas o
de uma década antes, o meu Black dos
tempos de estudante, o meu Black das
minhas paixões, das minhas ilusões, e da música flutuante que tornava a
realidade numa espécie de mundo paralelo.
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